Somaiê


Somaiê
pedagogia do observar



          A Somaiê nasceu como vertente de uma técnica somática desenvolvida por Roberto Freire ao longo de décadas, a Soma, e ambas pertencem ao domínio das somaterapias. Ao longo de 11 anos a Somaiê passou por mudanças variadas, dentre elas a incorporação da teoria e obra do neurocientista chileno Humberto Maturana, a Biologia do Conhecer. Essa teoria tem sido desde então nosso novo paradigma na proposta de uma nova pedagogia e dinâmica de grupo.


          Entre os dias 11 e 15 de maio realizamos no Vale do Pavão, Mauá – RJ um seminário de Somaiê e Te&So no qual participaram Rui Takeguma e o núcleo de Somaiê de Belo Horizonte (Camilo Surikate, Lucas Salazar e Bruno Pevie). Nesse seminário definimos novas diretrizes na forma de conduzir e propôr a Somaiê às cidades de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Esse encontro também marca o inicío de uma nova evolução da Somaiê, de uma coisa vagabunda nasce a pedagogia do observador (ou pedagogia do observar).










          O conceito de autopoiese é o que norteia as pesquisas desenvolvidas por Humberto Maturana desde a década de 1960, das quais nasceu sua proposta de Biologia do Conhecer. Como cientista, Humberto Maturana pesquisou a função da visão pela observação das atividades neuronais ligadas à retina comparada ao fenômeno cromático relacionado e descrito pelo observador (cientista). A interpretação da experiência e de seus resultados, desenvolvida por Maturana, permitiu-lhe uma compreensão muito mais profunda da organização de um ser vivo, e a essa organização ele deu o nome de autopoiese. Apesar de sua hipótese ter nascido de uma pesquisa em biologia, ao longo de décadas os desdobramentos de sua teoria já alcançam inúmeras as áreas do viver humano. Não são raras as propostas em pedagogia e psicoterapia individual ou de grupo que usam as ideias de Maturana na aplicação de uma técnica. Muitos conceitos em psicologia têm sido revistos pela ótica da realidade entre parênteses, além da própria função da pedagogia. Temos pesquisado a aplicabilidade das ideias da Biologia do Conhecer em dinâmicas de grupo, e isso tem transformado o fazer terapia numa forma de pedagogia.
          Pelas experiências que tivemos com os últimos grupos de Somaiê, um em Belo Horizonte e o último em São Paulo, e por outras condições que remontam um contexto mais amplo, mudanças estruturais estão sendo construídas para uma nova proposta de fazer terapia. Além de ter herdado as pesquisas que desenvolveram a Soma e a técnica somática, a Somaiê se orienta em conceitos fundamentais da Biologia do Conhecer. Dessa forma, por meio de vivências corporais procuramos demonstrar nossa natureza autopoiética e como cada pessoa cria e vive sua própria realidade. Nessas vivências experimentamos uma corporalidade mais autônoma, vivenciando as emoções que surgem das interações com outras pessoas em situações variadas como disposições corporais que apontam e tendem para ações e condutas que tem importância e depende a própria dinâmica autogestiva do grupo. Ao longo de meses experimentando vivências variadas, passando por situações que levam as pessoas a perceberem sua corporalidade de uma forma diferente à cotidiana, uma autoconsciência do corpo e dos processos vitais é construída, e com ela a percepção de que vivemos de fato em um multiverso de realidades possíveis, de modo que o que cada um vive é uma expressão do conhecimento construído em sua deriva ontogênica.
          O processo pedagógico e terapêutico que propomos com a Somaiê dura em torno de 18 a 20 meses, e se caracteriza por uma organização e estrutura. A organização passa por 4 fases diferentes, Aproximação, Aprendizado, Aprofundamento e Pedagogia para a vida (Cadeiras quentes). Nessa organização encontramos duas instâncias de atividades que moldam a estrutura da Somaiê, com o somaterapeuta e equipe técnica (co-terapeuta e assistentes) e entre o grupo:

- atividades com o somaterapeuta e equipe técnica: Essas atividades totalizam 20 horas de atividades mensais, sendo que 9h são de VIVÊNCIAS CORPORAIS¹ conduzidas pelo somaterapeuta ou co-terapeuta, 2h são de dinâmica de organização em que o grupo faz uma leitura sobre suas produções autogestivas e 1h de leitura sobre a prática da capoeira mensal. As 8h restantes são de TREINOS DE CAPOEIRA ANGOLA² conduzidos pela equipe técnica, tendo cada treino semanal a duração de 2 horas. Essas 8h mensais não excluem a possibilidade dos membros do grupo buscarem se envolver em outros grupos de capoeira angola da cidade, buscando um maior enriquecimento de experiências.


- atividades entre o grupo: Nessas atividades não há a presença do somaterapeuta e do co-terapeuta, apenas dos assistentes, e ainda assim cabendo ao grupo decidir em consenso sobre elas, se haverão ou não. São duas atividades, GRUPÃO e CAPOEIRÃO. Os GRUPÕES são reuniões que o grupo faz pelo menos uma vez ao mês para os membros discutirem e aprofundarem suas relações, além de buscarem criar formas alternativas de produções autogestivas de bancar os custos da Somaiê, ou ainda desenvolver projetos e pesquisas em pedagogia libertária podendo ser apresentadas nos Encontros de Te&So. O CAPOEIRÃO é um tipo de encontro do grupo, em que seus membros trocam experiências e aprendizados sobre o seu desenvolvimento e envolvimento com a capoeira angola. Nesses encontros também podem haver trocas de quem também frequenta outros grupos de capoeira angola na cidade.



AS QUATRO FASES DA SOMAIÊ

- A primeira chamamos de Aproximação, e é a fase inicial pré-Somaiê em que ainda não há um grupo formado, mas já existe a aproximação de pessoas com desejos em participar e formar um grupo. Nela pode haver pessoas com algum conhecimento sobre a Soma ou Somaiê adquiridos por leituras de livros e textos da internet ou por amigos, ou pessoas com nenhum conhecimento, fazendo o primeiro contato com as ideias em workshop. Esta fase tem uma duração variada, depende das pessoas interessadas manifestarem seus desejos e se disporem a formar o grupo. A transição entre esta e a próxima fase acontece pelo início do amadurecimento do grupo, e para marcar essa mutação e concretizar o novo grupo de Somaiê propomos então a primeira viagem, a VIVÊNCIA DE CAMPO (ou MARATONA DE CAMPO)³.

- A segunda fase é o Aprendizado, e a primeira Vivência de Campo é o marco da formação do grupo e o fim da fase anterior. Esta fase pode durar entre 1 e 4 meses e nela inicia-se a técnica somática e pedagógica da Somaiê. Nesta fase o grupo continua em formação e aberto a entrada de novas pessoas, mas aqui já se observa o amadurecimento de uma dinâmica autogestiva que irá acompanhar o grupo ao longo de todo o processo. A passagem desta fase para a próxima dependerá sensivelmente da dinâmica construída no decorrer dos meses de relação entre as pessoas do grupo. O fim da fase aprendizado é marcado pelo fechamento do grupo e por uma segunda Vivência de Campo. Agora entramos no aprofundamento da pedagogia do observador.

- Terceira fase, Aprofundamento: esta fase é a mais longa do processo de pedagogia da Somaiê, variando a duração entre 7 e 10 meses. Ao longo dos primeiros 7 ou 8 meses das duas primeiras fases, e mais as duas Vivências de Campo realizadas ao fim de cada uma delas, o grupo se desenvolveu em um nível de relação e autogestão que permite a cada membro do grupo um mais amplo conhecimento de si e do outro, possibilitando trocas diversas e percepções múltiplas das experiências vividas. Com o grupo fechado e as pessoas com mais amplo conhecimento de si, do outro e da organização autogestiva, variadas CRISES surgem na dinâmica do grupo. Essas crises são naturais, já que propomos a Somaiê como uma oportunidade de vivenciar um multiverso de realidades e possibilidades entre as pessoas. Nessas crises encontramos a oportunidade de aprofundar cada vez mais as relações e afinar a dinâmica e organização do grupo. Além da segunda Vivência de Campo, propomos ao grupo uma produção para o Jornal Tesão como marco do início desta fase. Assim como as duas primeiras fases finalizam-se com uma viagem de campo cada uma, o fim do aprofundamento também tem a sua. Essa terceira viagem de campo marca o amadurecimento do grupo para entrar nas Cadeiras quentes, é o início da quarta fase.

- Quarta fase, Pedagogia para a vida (Cadeiras quentes): este é o grande momento esperado pelo grupo de Somaiê. Depois de mais ou menos 15 meses de convívio, envolvimento, trocas e percepções diversas com sinceridade vivencial ao longo do processo pedagógico e terapêutico, potencializado com três Vivências de Campo e uma produção de jornal, é momento do grupo voltar-se para cada membro individualmente. A Cadeira quente é um processo inspirado nas hot seats da Gestalterapia e na própria cadeira quente da Soma, em que todo o grupo, inclusive o somaterapeuta e equipe técnica, retorna para cada membro do grupo toda as percepções e conhecimento adquiridos ao longo do processo. Cada membro do grupo terá seu momento de cadeirado, inclusive o somaterapeuta, co-terapeuta e assistentes. Esse é o momento de tornar explícito o conteúdo político da psicologia e de todos os nossos atos cotidianos, mostrando para cada pessoa do grupo que responder por cada ato é assumir a responsabilidade pelo seu próprio viver. A Cadeira quente é um marco na vida de qualquer pessoa, uma experiência única, e que seguramente possibilitará mudanças no viver de todos os envolvidos. Após todos os membros do grupo passarem pela cadeira, somaterapeuta e equipe técnica, é momento de finalizar o processo terapêutico com a quarta e última Vivência de Campo e mais uma produção para o Jornal Tesão.


SOBRE OS
ENCONTROS DE TE&SO

          Esses encontros foram criados a partir de 2006, como uma forma dos grupos de Somaiê ampliarem o espaço de trocas e experiências adquiridas para além dos domínios do próprio grupo. Nesses encontros buscamos diálogos com a comunidade e o social, que podem ser de inúmeras formas, desde produções artísticas e culturais como música, sarau, teatro e exposições, exibição de filmes, palestras, bate papos, etc, como intervenções diretas nos espaços públicos.




1 – VIVÊNCIAS CORPORAIS: As vivências de Somaiê são voltadas para a corporalidade em todas as suas extensões, podendo algumas ser na forma de debates e exibição de filmes, priorizando o pensamento e a comunicação verbal e corporal de uma outra forma. Mas no geral as vivências de Somaiê são exercícios que possibilitam as pessoas experimentarem seus corpos de formas variadas e que fogem ao comum do cotidiano. As vivências têm uma média de 3h de duração e dividida em três momentos, exercício, leitura e fechamento. Após o somaterapeuta conduzir o exercício, o grupo faz uma leitura de como foi a experiência vivida, ressaltando as percepções e sensações corporais. A leitura é o momento do grupo colocar em palavras o que foi vivido no corpo, e nesse momento o somaterapeuta não participa. Após o exercício e a leitura o somaterapeuta faz um fechamento da vivência, colocando para o grupo quais eram as propostas do exercício, de onde surgiu e cruzando essas informações com o conteúdo do que foi dito pelo grupo na leitura. Vale dizer que nas vivências aparecem as bandeiras, modos em que as pessoas deixam implícito (ou corporalmente explícito) medos, anseios, e outras emoções que as impossibilitam de viver o exercício de forma mais espontânea e tesuda.

2 – TREINOS DE CAPOEIRA ANGOLA: Até os últimos dois grupos, os treinos de capoeira angola eram de responsabilidade de cada membro do grupo, neste novo momento da Somaiê experimentaremos um novo formato. Fazer capoeira angola dentro do contexto da Somaiê é fazer vivência corporal, como qualquer outra, mas agora além de sugerirmos aos membros do grupo experimentarem outros grupos de angola da cidade, ofereceremos 8h mensais de treinos dentro do pacote de 20h de vivências. Essa é uma estratégia de manter o grupo praticando o mínimo de capoeira semanal necessário para surtirem os efeitos pedagógicos e terapêuticos e manter a capoeira mais viva no corpo de cada um.

3 – VIVÊNCIAS DE CAMPO (MARATONA DE CAMPO): As vivências de campo são de extrema importância no processo pedagógico do grupo. Além de ser uma oportunidade de conhecer uma região de exuberante beleza natural, localizada no Parque do Itatiaia, onde se encontra muita mata atlântica preservada, rios e cachoeiras belíssimas, essas viagens são uma ótima forma dos grupos exercitarem a autogestão. Mauá é uma região que fica a 200km da cidade do Rio de Janeiro e a mais de 400km de Belo Horizonte e São Paulo. A organização da viagem é um desafio para o grupo se autogerir em vários níveis, desde o levantamento de fundos para cobrir os custos da viagem até o deslocamento propriamente dito. Mas uma vez em Mauá, as experiências vivenciadas no campo ajudam a fortalecer e agregar as pessoas na dinâmica do grupo. O contato com a natureza mais viva dentro do contexto da pedagogia do observador é uma experiência única, conviver em grupo autogestivo em meio a matas, rios, cachoeiras, saunas, etc, tornam as vivências de campo um divisor de águas na evolução do grupo.


Lucas Salazar



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